Professor da USP faz crítica à abertura do mercado nacional de saúde

Professor da USP faz crítica à abertura do mercado nacional de saúde


WCONECTA: Recentemente foi sancionado o artigo da MP que autoriza a entrada de capital estrangeiro no país. Na sua opinião, quais serão os maiores benefícios/beneficiados pela medida? E quais os riscos que se corre com a medida?
áquilas Mendes: Imediatamente após a aprovação da MP, várias entidades vinculadas ao Movimento da Reforma Sanitária (MRS) redigiram um manifesto solicitando o veto presidencial ao artigo 142 do texto da MP. Porém, o veto da presidenta Dilma não ocorreu. O entendimento das entidades, que concordamos, ressaltam que a nossa Constituição, em que o nosso sistema de saúde é universal, isto é, a saúde é um direito de todos e dever do Estado, é  explícito a vedação da participação do capital estrangeiro. Nesse sentido, o não veto da presidente desrespeitou o texto constitucional. Diante dessa inconstitucionalidade, as entidades do MRS, mantendo seu compromisso com a preservação do direito universal à saúde e com a responsabilidade do Estado na garantia desse direito, vêm realizando uma posição contrária a essa nova Lei e defendendo que o Supremo Tribunal Federal decida pela aprovação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), que já foi encaminhada por outra entidade que não integra o MRS. Entendemos que é preciso repudiar essa medida e o posicionamento do governo federal que vem mantendo o seu argumento a favor.


WCONECTA: O ingresso do capital externo já acontecia antes, por meio do investimento em planos de saúde ou laboratórios de diagnósticos, por exemplo. Ou seja, o dinheiro já chegava ao país, mas de uma maneira ainda exclusiva para essas instituições. O que muda com essa liberação e regularização?
AM: Na realidade, o governo federal tem insistido no argumento de que a primeira “brecha” para a entrada de capital estrangeiro no mercado de saúde brasileiro ocorreu em 1998, com a lei que regulamenta Planos de Saúde e, sendo assim, a Lei n.º 13.097 não constitui uma novidade nesse campo. A partir da Lei de 1998, operadoras de saúde de capital internacional, sob a liderança do capital financeiro, foram autorizadas a comprar planos no Brasil. Sabe-se que desde então, a empresa United Health adquiriu a Amil e o grupo americano Bain Capital – fundo de private equity e venture capital – comprou a Intermédica. Contudo, os defensores dessa argumentação esquecem de dizer a respeito da resistência por parte de várias entidades vinculadas ao SUS quando da aprovação dessa Lei e, principalmente, os problemas que essa decisão foi prejudicando a defesa do direito universal à saúde. Trata-se de um processo de privatização contrário à Nossa Constituição. Sem dúvida, a Lei n.º 13.097 veio para agravar ainda mais a possibilidade de ampliarmos a conquista desse direito pela sociedade brasileira. O caminho está sendo outro: privatizar.

WCONECTA: O que faz o mercado brasileiro atrativo para o investimento externo?

AM: Trata-se de um grande mercado de consumidores, principalmente após as reformas introduzidas pelo Governo Lula: evolução do salário mínimo real, programas de transferências de renda, expansão do crédito à população. Porém, essas medidas já estão limitadas para ajudar a expansão do mercado interno brasileiro. A situação da crise econômica mundial já está impactando o Brasil. Não podemos admitir que a saúde seja tratada como uma mercadoria que pode ser comprada, isso é contra a nossa Constituição. Para conseguir crescer economicamente o Brasil deveria aumentar o investimento coordenado pelo Estado, e isso não vem acontecendo devido a política econômica.

WCONECTA: é provável que estes investimentos sejam destinados a negócios já existentes ou devem ir para abertura de novos? 

AM: Possivelmente, os investimentos estrangeiros também irão disputar as Santas Casas com problemas financeiros. A Lei 13.907/2015 permite isso.

WCONECTA: áreas como neurocirurgia, ortopedia, cardiologia e oncologia, que costumam ser mais rentáveis, já atraem atenção de investidores nacionais. Vai haver conflito de interesse entre investidores estrangeiros e os brasileiros, que disputarão esse mesmo filão?

AM: Sem dúvida, assistiremos uma expansão da concorrência entre os investidores estrangeiros e nacionais. Estaremos caminhando para uma situação na saúde como nos Estados Unidos. Todos sabemos que aquela situação é de barbárie! Aquele país não tem nenhum exemplo de um razoável sistema de saúde para a sua população.

WCONECTA: O que essa medida representa em um país que sofre com o déficit de leitos hospitalares?

AM: O SUS sofre de um subfinanciamento crônico, isto é, histórico. A maior disponibilidade de ações e serviços de saúde dependerá da resolução do problema de subfinanciamento. Ao não contar com fontes definidas e seguras, principalmente pelo governo federal, o gasto com saúde pública é muito baixo (3,9% do PIB – 2014), sobretudo se compararmos com países europeus com sistemas universais que, em média, gastam cerca de 8,3% do PIB. Temos que ampliar os recursos públicos com saúde, aí quem sabe poderíamos ter um maior número de leitos hospitalares. O SUS deve contar com mais recursos e aí poderia aumentar o número de leitos e outros serviços. Sabemos que esse subfinanciamento se deve à continuidade da política econômica fundamentada no tripé – metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante -, adotada pelo governo federal desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e seguida pelos governos Lula e Dilma, dando origem a constantes constrangimentos – cortes de gastos públicos, principalmente sociais – que impedem o pleno desenvolvimento da saúde universal no país, dada a situação de subfinanciamento que impõe ao SUS. O quadro econômico, que se seguiu à criação do SUS, é significativamente diferente daquele quando os países capitalistas avançados, principalmente da Europa, desenvolveram seus sistemas universais de saúde. Se no passado, havia plenitude de recursos, atualmente estes são disputados com o capital financeiro, cujo interesse é manter o pagamento dos juros da dívida pública e acessar recursos antes obstaculizados.

WCONECTA: Qual é a expectativa de mudança para o setor em 2015? Os efeitos dessa mudança devem ser sentidos já este ano?.

AM: Certamente, a situação do direito à saúde para a população brasileira será prejudicada. Será ampliado o “negócio” da saúde, o que contraria a Nossa Constituição. As entidades vinculadas ao Movimento da Reforma Sanitária irão crescer seu descontentamento e luta. Teremos um ano de muita disputa em torno de assegurar o direito à saúde universal no Brasil, conquistado pela sociedade brasileira.
Matéria publicada originalmente na revista Wareline Conecta – Edição 09– Abril/2015

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